sexta-feira, outubro 31, 2008

Amanhã

Faria frio. Frio a sério. Aquele frio em que o vento passa pelos buracos que nem sabíamos que os casacos tinham. Haveria aquele vento que não há nem nos 16 graus negativos da Noruega, que atravessa roupa e pele até aos ossos.
Vestiríamos os kispos. Apressadamente, que nunca foi possível chegar a horas àquela casa, apesar de chegarmos sempre à mesma hora.

Vestíamos kispos porque deixavam passar menos vento e eram mais confortáveis que os outros casacos, para andar em casa. Naquela casa, de porta sempre aberta, onde fazia tanto frio dentro como fora, nunca se tirava o casaco. Às vezes parecia-me mesmo que fazia mais frio dentro do que fora.
Por alguma razão que nunca percebi, nos Santos, ao contrário do Natal, a comida não estava fria.
Chegávamos sempre à mesma hora, sempre atrasados. O homem que corria mundo tinha mais pressa em chegar àquela casa que a qualquer outro canto do mundo. Nós tínhamos pressa em sair. Tínhamos frio naquela casa onde às vezes fazia mesmo mais frio dentro do que fora.
Nos Santos, no entanto, eu gostava de comer lá: migas com costado frito, papas de milho e broas. Nos Santos a comida estava quente e aquecia o estômago enquanto os pés gelavam.
Depois íamos para a braseira aquecer os pés enquanto o resto do corpo arrefecia.
Depois caia a noite e voltávamos à nossa casa quente onde pendurava o kispo no roupeiro. Lá ficava até ao Natal, quando voltaríamos para comer a comida fria naquela casa onde, às vezes, fazia frio mesmo no Verão.
Um dia fez demasiado frio dentro daquela casa e não voltei a vestir o kispo.


Amanhã não fará frio, mesmo que pareça.
Amanhã não iremos à cidade onde o frio chega até aos ossos.
Amanhã temos de preparar a casa da cidade em que não faz frio para os próximos anos.
Um dia aprenderei a fazer migas com costado frito e papas e broas de milho. Havemos de as comer em casas quentes com o frio lá fora.
Cá ou lá, não voltaremos a ter frio, nem no dia de Santos.


Não sei porque ainda guardo o kispo.
Lá está há anos, pendurado, como se esperasse outras migas com costado frito e papas e broas de milho; como se à espera que a porta daquela casa se feche.

2 comentários:

Anónimo disse...

xiça... tenho saudades tuas...

mafaldinha disse...

Uma vez mais conseguiste, porque quase só tu consegues, romper o muro. Nunca passámos "épocas festivas" juntas, mas lembro-me dessa casa fria, lembro-me do que lá brincámos e o estranho é que hoje (se me propusesse) já nem lá saberia chegar.
Estas épocas são as piores, porque trazem memórias - umas doces, outras nem por isso - que o resto do ano trata de empurrar para o fundo de uma gaveta.

Enquanto essa porta não se fechar o kispo vai continuar pendurado detrás da porta. Tal como o carro me continua a puxar em sentido contrário na autoestrada, todos os dias 23 de Dezembro. Porque a tradição pesa e temos saudades até daquilo que nunca pensámos sentir falta.

Beijos